Crítica – Soul

Crítica – Soul

O OCEANO DE EMOÇÕES DA PIXAR

É duro quando você se torna um adulto, termina uma animação e encontra-se em prantos. Principalmente quando se trata de uma animação que desde a sinopse você SABE que irá terminar o filme (ou passar toda a obra) em prantos. E quando tal choro torna-se oceano? Aquele oceano gostoso que nos faz refletir. É o que essa nova animação da Pixar exatamente traz: oceano de lágrimas e de reflexões.

Divulgação/Disney

Soul nos traz a luz a história de Joe (Jamie Foxx), um professor de jazz que ainda sonha em viver de música mesmo tendo uma carreira fracassada nesta. E quando tem uma oportunidade de ouro, perde sua vida inesperadamente, tornando-se uma alma. Ao relutar em morrer, ele embarca numa aventura de tutor ao tentar mostrar à 22 (Tina Fey) o propósito de sua vida. Mas a pequena alminha que ainda virá ao mundo não é tão fácil de se lidar, tampouco o músico/professor, proporcionando assim diversas confusões para a dupla em meio a conciliações e separações.

A obra claramente trata da morte e da vida, desde os sonhos as desilusões. De ambas. Desde a sinopse o filme rasga “spoiler” sobre o primeiro desfecho do personagem. E mesmo que algum desavisado não saiba de tal morte, é de se presumir que logo ela aconteça até por conta de total destrambelho do protagonista Joe. O filme é justamente sobre o desapego de Joe pela própria vida e isso reflete em sua forma despreocupada de atravessar a rua sem olhar os carros ou passar no meio de construções sem se preocupar com os riscos. Joe tem um foco e não é demérito do ser humano ter um foco na vida, mas somente tal foco talvez não seja o que dê sentido a ela. É quando 22 assume esse papel de escada e de protagonista também, pois a própria é o Yang (se tivermos o Joe como Yin). Há um certo destrambelho nela, mas pelo contrário, ela é uma espécie de alheia a “morte” (aqui entre aspas por esta sequer ter tido uma vida). Resumidamente, Joe não se preocupa com a vida e 22 não se preocupa com a não-vida. E é na jornada que ambos trilham juntos que as descobertas surgem. E que jornada.

Embalado pelo mais puro e belo jazz, o filme regido por Pete Docter e co-regido por Kemp Powers, caminha brincando com as emoções do espectador, mas nunca deixando o bom humor de lado. Na mais boa e velha forma Pixar de agir. Desde o inicio ficamos aflitos, com nó na garganta e ao mesmo tempo tiramos boas gargalhadas das situações vividas pelos personagens. E aos poucos, nós mesmos vamos entendendo o sentido da vida. Culminando no ato de tornar nós espectadores em Joe ou em 22. As formas e o corpo que o filme toma a cada novo ponto de virada surpreende e entrega uma animação complexa e recheada. Pois o que parecia ser uma aventura no mundo das almas, retoma também o mundo físico e deixa o espectador que se acha espertinho boquiaberto e sem saber o que vem a seguir. E quando o espectador dá por si, já está completamente envolvido a história e aos personagens tal qual o gato Joe na barbearia quando a 22/Joe (coisas que só quem já assistiu ao filme entenderá) conversa com todos em sua volta assuntos que aparentemente são bestiais. E o filme é sim como um jazz, seus momentos de clímax são como um bom improviso no piano, levando o espectador ao devir estonteante, a uma viagem que só a música pode proporcionar. O filme nos leva ao campo que o próprio filme nos apresenta.

Os personagens são cativantes e há uma força ainda maior por se tratar de um protagonista negro. E o que salta ainda mais aos olhos nessa obra é sua naturalidade. O filme escancara racismos diários, não à toa em um primeiro momento o protagonista demora a conseguir um táxi. E Joe é um personagem muito cativante desde o inicio. Ficamos cativados por nos espelhar nele, até porque quem é que não tem um sonho? O fato de o personagem persistir e lutar por ele nos deixa na mesma posição, torcendo. Mas o filme também o descontrói e essa busca por sonho transforma-o num completo egoísta, o que também somos, mas quando vemos personagens assim somos um tanto que distanciados deles. Principalmente quando tal egoísmo irrompe outra personagem cativante como a 22. Desde os primeiros momentos em tela, com seus dentinhos pra fora e seu jeito “caguei” de ser. Um desleixo que diverte e que proporciona um excelente duo com Joe. E quando sua personagem também é descontruída, somos então arrebatados e passamos a torcer por ela. Tudo vai descambando até o espectador pegar-se com oceano (ou águas) em seus olhos.

Assim, da forma mais suave e sutil, a Pixar também ousa deixando um final “em aberto”. Por mais que a história em si tenha se concluído. Com aquela mensagem que deixa o espectador durante todos os créditos reflexivo e choroso, perguntando-se: Qual nossa missão? Qual nosso propósito? O que fazer para aproveitar a vida? Por mais que a resposta já esteja diante nossos olhos, ouvidos, sentidos.

Soul finaliza de forma grandiosa o ano doidera que foi 2020, dando respiro e coragem para os tempos vindouros. Fazendo ainda acreditarmos que é possível, basta fazermos o simples, o que também é jazz, se pararmos para pensar que da simplicidade podemos tirar algo tão rico e complexo.

Nota: 4/5

Título: Soul
Direção: Pete Docter
Co-direção: Kemp Powers
Roteiro: Pete Docter, Kemp Powers e Mike Jones
Distribuição: Disney
Ano: 2020

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